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Estudantes vão ao cemitério para aprender história e matemática

Michelangelo Giampaoli, professor na Universidade de Chicago (Estados Unidos) e estudioso de espaços funerários, costuma dizer que não deveríamos olhar para os cemitérios com tristeza: são lugares onde se encontra a paz.

Por Jair Bala em 02/05/2023 às 07:41:57

Michelangelo Giampaoli, professor na Universidade de Chicago (Estados Unidos) e estudioso de espaços funerários, costuma dizer que não deveríamos olhar para os cemitérios com tristeza: são lugares onde se encontra a paz. E muitas histórias. Em busca delas, desenvolvemos, para unidade curricular “Prática e produ(a)ção científica”, da Escola de Educação Básica Educar-se, em Santa Cruz do Sul (RS), um projeto com ponto de partida no cemitério municipal localizado bem próximo à escola. 

Interdisciplinar, voltada à turma do 1° ano do ensino médio, a proposta seguiu a premissa da unidade curricular: “ampliar a capacidade dos estudantes de problematizar, de investigar e agir cientificamente na realidade social, compreendendo, valorizando e aplicando o conhecimento sistematizado”. Ganhou o nome de “Biografias santa-cruzenses: educação, história e patrimônio”, reunindo elementos da matemática e da história com muita pesquisa. De agosto a dezembro de 2022, nós, professores, buscamos articular uma experiência científica que, sobretudo, mobilizasse o interesse e a curiosidade dos estudantes.

O passeio inusitado chamou a atenção da turma do 1° ano, que fez uma caminhada pela necrópole sob nossa orientação. Nós enfatizamos a importância histórica dos cemitérios e a dimensão cartográfica em diferentes temporalidades, e indicamos alguns jazigos de valor patrimonial, artístico e cultural de famílias com representatividade na comunidade.

Cada grupo de estudantes deveria, então, escolher um personagem a ser pesquisado e biografado, articulando suas trajetórias ao contexto social, cultural, político e econômico. Poderiam ser pessoas notórias ou anônimas. 

Visita dos estudantes ao Cemitério Municipal de Caxias do Sul
Arquivo pessoal

Passo a passo

Foram, ao todo, 16 nomes selecionados. Nas semanas seguintes, os estudantes iniciaram o levantamento das fontes, por meio de pesquisas. Enquanto dois professores ficavam com um grupo, mediando o processo de pesquisa e escrita das redações no laboratório de informática, o outro levava parte da turma à biblioteca da escola, para consultar o acervo do jornal Gazeta do Sul (com exemplares disponíveis desde 1945). Os anúncios fúnebres geralmente são publicados no periódico um dia após a data de falecimento, e os nomes mais conhecidos na cidade também eram temas de matérias ali publicadas. 

Por meio das redes sociais, os alunos entraram em contato com os familiares dos biografados. Nós também orientamos essa etapa, com uma mensagem padrão, explicando o cunho científico e respeitoso da pesquisa. Contamos, inclusive, com o apoio do jornal Gazeta do Sul, que publicou uma reportagem sobre o projeto, dando-nos ainda mais credibilidade para apresentá-lo à comunidade.

A matéria chegou até o antropólogo italiano Michelangelo Giampaoli, que citamos no começo deste relato. Ele fez questão de marcar uma videoconferência com a turma, e o bate-papo nos ajudou a enxergar o cemitério com outro olhar, voltado ao patrimônio público e à importância histórica. Pudemos compreender as necrópoles como guardiãs de histórias, de memórias individuais e coletivas, bem como seus valores patrimonial, cultural, artístico e turístico. A palestra contribuiu para sustentar pedagógica e cientificamente a pesquisa, por se tratar de um pesquisador de renome internacional nos estudos relacionados às necrópoles.

Clique na foto e confira a galeria de imagens do projeto

Resultados

Entre aqueles que tiveram suas histórias recontadas pelos estudantes, os ex-prefeitos Armando Wink e Arno Frantz são os mais conhecidos. Entre os “anônimos”, e não menos importantes, estão o ex-combatente da Segunda Guerra Mundial, Julio Machado da Silva, e o jogador de basquete Matheus Rafael Raschen, vítima do incêndio na boate Kiss, em Santa Maria, em 2013.

Além do artigo científico, os alunos apresentaram aos colegas e aos coordenadores os trabalhos produzidos no decorrer do semestre, enfatizando aspectos da vida pessoal e profissional dos biografados. 

Mesmo com pouco tempo de apuração, o trabalho em grupo e a organização foram aspectos centrais para a efetivação dos trabalhos. Aliado a isso, destacamos um desafio: a análise e a interpretação das fontes, especialmente em relação aos personagens sem notoriedade pública. Em alguns casos, as fontes eram escassas, sendo a família o elemento de referência para escrever o projeto. A turma também superou incertezas, tendo em vista que o aprendizado se deu no próprio processo – inclusive para nós, coordenadores.

Acreditamos que, ao estimular a pesquisa biográfica a partir do Cemitério Municipal de Santa Cruz do Sul, os alunos puderam compreender as necrópoles para além das dimensões estigmatizadas do sofrimento e da dor, bem como desenvolver habilidades fundamentais para sua formação educacional e pessoal. Os desdobramentos pedagógicos permitiram aos estudantes tomar consciência sobre a necessidade de preservação e valorização do patrimônio material e da memória local, bem como estabelecer uma relação mais próxima com a comunidade.

Fonte: PORVIR

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